Andar é habilidade locomotora que quase todos alcançam por volta de um ano de vida. O corpo humano é estruturado para o movimento e certamente experimenta efeitos nocivos quando não se move. Nesse contexto, caminhar pode ser o primeiro passo (sem trocadilhos) para algum programa de condicionamento físico em academias e centros esportivos mundo afora. Daí, aumentar gradativa e agradavelmente em intensidade e frequência, torna-se uma clássica forma de melhorar o condicionamento físico aeróbio, caminhando, trotando e logo correndo. Andar de um cômodo a outro da casa, entre o elevador e o carro na garagem ou do escritório até o restaurante na hora do almoço é caminhar também. Leve, confortável, natural e acessível. Caminhar para melhorar fisicamente, caminhar utilitariamente deslocando-se pelo bairro ou caminhar por lazer são algumas dentre tantas possibilidades. O importante é caminhar.
Os efeitos da prática de exercícios físicos têm sido bastante estudados e estabelecidos. Chamamos de efeito agudo ou respostas fisiológicas, aqueles advindos de uma única sessão executada ou mesmo feito inesperadamente, como a elevação da frequência cardíaca. E conhecemos como crônicos, os efeitos acumulados no transcorrer da prática de exercícios físicos por algumas semanas ou meses. Um programa com várias sessões e estímulos sistematizados pode ter como resultado o aumento da força muscular, por exemplo.
Seja pelos efeitos agudos ou crônicos, o exercício físico é auxiliar no tratamento de males modernos e na melhora dos índices de saúde. Por exemplo, estudos mostram que a pressão arterial tem redução após uma única sessão de exercício, tanto para hipertensos como para normotensos. Já um programa de treinamento físico orientado aos hipertensos, com exercícios leves e moderados, aumenta os efeitos benéficos para eles. De maneira parecida, exercícios agudos e crônicos podem causar maior absorção de glicose pelas células tanto em indivíduos saudáveis como nos diabéticos. A grosso modo e até certo ponto, é como se os resultados fossem proporcionais à prática. Ainda, os exercícios atuam na secreção de insulina, adrenalina, serotonina, endorfina e tantos outros hormônios e neurotransmissores. Estes são importantes também ao bem-estar emocional e no lidar com desconfortos. Em suma, o exercício físico adequado pode trazer melhora e continuidade no funcionamento corporal, devido a sua regulação fisiológica, hormonal e neural. Como citam CANALI e KRUEL (2001), “os exercícios físicos provocam adaptações, tanto praticados de maneira crônica quanto aguda, de modo que o que antes era um dano ao corpo possa ser transformado em estímulo.”
É provável que percorrer a pé uma trilha, de um ou de poucos dias, traga somente efeitos agudos. A questão é: se não obtivermos os ganhos aeróbios de um programa mais longo de caminhada, será que valeria a pena percorrê-la mesmo assim? Algumas pessoas podem ainda alegar os desgastes e dores causadas pelo grande esforço sem hábito, carregando mochila, suor sob horas de sol ou chuva e quilômetros e quilômetros percorridos para sentir o corpo perto da exaustão. Tudo isso pode reforçar negativamente o desejo de uma próxima experiência. Há um abismo entre o sofá e a estrada empoeirada e outro entre essa experiência e o desejo de uma segunda aventura. Mas se caminhar pode ser tão desconfortável, por que alguns praticantes são tão apaixonados e continuam a se lançar em mais e mais caminhadas longas? Pode ser que para eles, caminhar tenha adquirido outro sentido.
Autores da área de Humanas têm pesquisado sobre sentido e significado atribuídos pelas pessoas a fenômenos e experiências. LEONTIEV (2013) diz que sentido/significado (entendido como meaning) são representações mentais compartilhadas das possíveis ligações entre coisas, eventos e relacionamentos. Assim, meaning, é o que os conecta. Classificando em duas dimensões, pode-se entender sentido como a instância máxima integrativa da personalidade e significado, como os múltiplos elementos da conduta humana e processos mentais. Meaning continua sendo um desafio complexo para a psicologia mas de forma simplista, sugere mesmo conexão. Por exemplo, antropologicamente, significado pode ser entendido como o reforço de uma situação “aqui-agora” para uma outra, “vida-e-mundo”.
CRUST et al (2011) ao estudar a experiência de seis caminhantes de longa distância, conduziram entrevistas de abordagem fenomenológica, baseadas numa primeira questão aberta: “Como foi/O que é percorrer a pé uma rota de longa distância?” Os resultados foram apurados por três pesquisadores convidados, familiarizados com método fenomenológico, mas não com caminhadas longas. Contextualizaram os temas e sentimentos relatados em períodos pré-caminhada, durante-caminhada e pós-caminhada. Em número de temas, a fase durante-caminhada pareceu a mais produtiva. Apesar de citarem pés, músculos e articulações doloridos, participantes também mencionaram “estar completamente absorvidos em caminhar”. Em dimensões gerais, os pesquisadores analisaram as citações como “encarar desafios” e “sentir-se em fluxo”. Já na fase pós-caminhada, destacando aqui citações diretamente relacionadas ao corpo, vemos sentimentos como “mentalmente e fisicamente melhor que nunca; sentir-se calmo e relaxado; sentir-se mais apto e com pernas doendo cada vez menos; sentir o corpo como máquina bem lubrificada e ter o corpo em harmonia perfeita”. Esses relatos foram agrupados pelos pesquisadores como:”sensação de bem-estar; ver a vida em perspectiva; confiança além-da-caminhada; sensação de alívio e autodescoberta”. Em resumo, “crescimento pessoal”.
LARROSA BONDÍA (2002) ao falar sobre experiência, toma essa palavra em diferentes idiomas. Sugere ser a “experiência aquilo que nos passa, o que nos toca e o que nos acontece”, sendo necessário para isso uma certa passividade. Outro fundamento da experiência é sua capacidade de formação ou transformação. É comum ouvirmos em conversas com caminhantes que “após caminhar, voltamos diferentes para casa”.
Parece que todos teríamos motivos para caminhar, seja com frequência, num único domingo ou por alguns dias seguidos. É desejado que o significado percebido/sentido pela pessoa leve-a a buscar mais oportunidades de prática. Talvez o prazer, a contemplação, o desafio ou as memórias encontradas no percorrer de trilhas, caminhos e travessias façam com que o indivíduo queira reencontrá-los numa caminhada perto de casa, num parque ou academia. Além de benefícios para a vida geral, fisiologicamente com o repetir de sessões, o corpo só teria a ganhar. Caminhar é boa estratégia.
E desejando inspirar você ir à janela ver o sol , um sopro na obra de Rebecca SOLNIT (2016), A História do Caminhar:
“Caminhar vem sendo uma constelação no céu estrelado da cultura humana, uma constelação de três estrelas: o corpo, a imaginação e o mundo, vasto e franco. Os campos e as ruas estão à espera.”
Logo que for seguro, experimente!
Abraço a todos, profa. Carolina
Referências:
BRUM, P.C; FORJAZ, C. L. M.; TINUCCI, T. NEGRÃO, C. E. Adaptações agudas e crônicas do exercício físico no sistema cardiovascular. Revista Paulista de Educação Física. São Paulo, v.18, p.21-31: ago. 2004.
CANALI, E.; KRUEL, L. F. Respostas hormonais ao exercício. Revista Paulista de Educação Física. São Paulo, v. 15, n. 2, pp 141-153: dez. 2001.
CRUST, L; KEEGAN, R; PIGGOT, D; SWANN, C, Walking the walk: A Phenomenological Study of Long Distance Walking. Journal of Applied Sport Psychology, 23:243-262 pp: 2011.
MELLO, M.T; BOSCOLO, R. A; ESTEVES, A. M; TUFIK, S. O exercício físico e os aspectos biológicos. Revista Brasileira Medicina Esportiva, vol 11, n.3, pp.203-207: 2005.
LARROSA BONDÍA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. in: Seminário Internacional de Educação de Campinas. Julho/2001. Conferência. Publicado em Revista Brasileira de Educação, n. 19 jan/abr, pp. 20-28: 2002.
LEONTIEV, D. Personal Meaning: a challenge for psicology. The Journal of Positive Psychology, 8(6), pp. 459-470: 2013.
SOLNIT, R. A História do Caminhar. trad. Maria do Carmo Zanini. Martins Fontes, 2016. pp.9-35, 137-175 e 247-280.